quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Livre pensamento

O direito de ser ateu
Sou ateu. Mas não se assustem, não devoro criancinhas, nem farei o mínimo esforço para ampliar o número de ateus no mundo. Para mim, tanto faz. Quem quiser passar o dia na igreja, que passe, é problema dele e não tenho nada com isso.
 Quero apenas exercer meu direito ao livre pensar. Sem ser ofendido, como geralmente ocorre. Nós, ateus, somos comparados ou nivelados ao que pior existe na humanidade. Como se os crentes fossem, por acaso, campeões mundiais em virtudes, moralidade e santificação. Tudo que aspiro é que não venham me molestar, tentando me converter. Assim como não perco meu tempo tentando erodir a fé alheia.
Certa vez, num vôo de Brasília para São Paulo, sentei por acaso ao lado de um padre. Puxou conversa e acabei revelando, nem sei por qual razão, que sou ateu. Tremenda mancada. O padre encheu meu saco a viagem inteira, tentando me provar a existência de Deus. Eu teria pelo menos uma centena de contra-argumentos, e outra centena de questionamentos, inclusive invocando grandes pensadores ateus, mas não estava com a menor paciência para esse tipo de diálogo. Principalmente por sua inutilidade: ele não me convenceria, nem eu abalaria sua fé. Quero que ele continue feliz, acreditando. E que me deixe em paz na minha felicidade descrente.
Ainda garoto vivi o castigo de estudar três anos em colégio marista, em Santa Maria (RS). Meu esporte preferido era atazanar os “padres” com perguntas para as quais não tinham respostas. E quando tinham não eram alicerçadas em lógica. A invocação da fé era uma resposta padrão, servia para tudo. O argumento Bom Bril, com mil e uma utilidades. O troco deles foi uma perseguição implacável, que me custou até reprovação. Alguns dos maristas eram famosos no colégio por seus assédios pedófilos. Como eu poderia acreditar na palavra santa de um sujeito que sequer disfarçava sua atração por garotos? Alguns vinham passando a mão mesmo, era preciso correr, e as piadas sobre eles corriam entre a molecada.
Com essa incursão no catolicismo, e filho de família espírita, que misturava numa boa kardecismo com umbanda, acabei derivando para a descrença total de tudo. O mesmo já havia ocorrido com meu irmão mais velho, o Rubem Mauro. É um processo longo se tornar ateu. Desde criancinha ouvindo falar de Deus, você não se separa disso como quem troca de camisa. Tem que passar pela crise da dúvida. Não raro, pelo temor de desagradar e ofender o criador, sendo alvo depois do seu castigo. Mas uma vez instalada a descrença, será definitiva. Histórias de ateus que se converteram na hora da morte, se é que são verdadeiras, nada significam. Crença em momento de delírio ou desespero, ou sob efeito de medicamentos, não é crença. Nessa hora ninguém está na serenidade da reflexão e do juízo. Crer ou não crer só pode ter sentido em estado de absoluto controle das suas emoções e pensamentos. Na sobriedade e paz. Comparando, que valor podem ter as convicções de bêbados e drogados, que não controlam sequer suas atitudes mais triviais?
O caminho para a descrença é quando se percebe que a mesma engenharia que permite construir a idéia de Deus serve também para explicar sua inexistência. Cada argumento que explica Deus pode ser empregado para questionar sua origem. Sem origem, sem um agente, nada existe. Um ser que veio do nada e sempre existiu não cabe na minha cabeça. Até confesso: quando acreditei, seguindo o senso comum e imposto às crianças sem chances de discernimento, me esforcei para isso.
Eu poderia enganar aos outros, mas não a mim próprio. Fingir ter fé, por qualquer tipo de conveniência, ou por mera covardia de assumir a descrença, é safadeza.
       

9 comentários:

  1. Caro jornalista Milton Saldanha!
    Como é do seu conhecimento estamos na mesma sintonia!!!
    Deixo claro que não tenho a mais remota intenção de convencer ninguém a tornar-se incrédulo...
    Se a grande maioria dos nossos semelhantes querem dar sentido as suas existências acreditando que somos marionetes de um suposto Deus onisciente e onipresente é problema deles, porque é mais simplista velar do que desvelar e explicar o inexplicável através dos mitos.
    Caloroso abraço! Saudações incrédulas!
    Até breve...
    João Paulo de Oliveira
    Diadema-SP

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  2. Caro João Paulo: concordamos. Cada um acredita no que quer, é um direito. Os únicos que não pensam assim são alguns religiosos, que tentam impor até pela violência os seus preceitos. Abraço,
    Milton Saldanha

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  3. Milton, adoro ler e conversar com pessoas que pensam diferente de mim. A tua crônica reforça as diferenças que existem e acentua o teu respeito ao próximo, exemplo que deveria ser praticado principalmente entre os seguidores de Deus.
    Abraço,

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  4. Ola Milton!
    Excelente seu texto. Acho muito digno quando alguém consegue expor o que acha, sente, e acredita, com firmeza, e opinião, e isto você tem de sobra. Consegue passar a idéia, sem afetar o que o outro acredita, sem impor ou induzir. Parabéns!
    Lembrando que sou religiosa, espirita, e frequento minha religião.
    Saudades suas
    Beijos
    Malu Oliveira

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  5. Milton

    adorei seu blog! Também nãp acredito neste deus absoluto, mas sempre sabemos tão pouco, que é mais fácil explicar deus como responsável pelo que desconhecemos.

    Para exemplificar, li outro dia um texto intrigante: dois gêmeos ainda no útero discordavam sobre a questão levantada por um deles: você acredita em vida após o parto?

    Bjs

    Lucia Sauerbronn

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  6. Caro jornalista...
    Bem me espantei com o título de seu artigo ao receber a chamada para ler seu blog.
    Creio que após ler seu texto, passei a admira-lo ainda mais pela lucidez e brilhantismo exposto em suas palavras.
    Fico perplexo, e às vezes até doente, quando vejo as pessoas se deixarem levar pelos mitos, tradições, rituais católicos, judaicos, budistas,evangélicos, afro-cristãos, entre tantas outras religiões e seitas; tudo isso sem o menor questionamento sobre o que foi feito de bom e ruim em nome da fé. Uma fé cega, que só enxerga o que deseja ver, sem visitar o passado e até mesmo ignorando os princípio e a origem dos criadores dessas mesmas filosofias teológicas. Parabéns pelo esforço, coragem e voz.

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  7. Amigas e amigos: agradeço pela participação e cumprimento a todos pelo brilho dos comentários. Com tolerância e respeito, em tudo, o mundo seria bem melhor.
    Abraços!
    Milton Saldanha

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  8. Olá Milton,
    A fé é um dom de Deus. Uns têm, outros não tem. Mas, mesmo assim, Ele é pai de todos: crentes e ateus. Mesmo assim, eu rezo por ti. Quem sabe...
    Um feliz Ano Novo pleno de realizações, e continue assim, amealhando a admiração e respeito de todos; tangueiros ou não.
    JAIRO BRAZ

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  9. Querido amigo Jairo Braz: pelo sim, pelo não, agradeço por suas preces. Se eu estiver errado devem me ajudar a suportar o calor do inferno. Brincadeiras à parte, tenho grande apreço por você. Conheço suas convicções, foi jesuíta, é um homem culto e de grande formação moral. Além de saber dançar tango muito bem.
    Obrigado, abraço super grande!
    Milton Saldanha

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