quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Coisas do trânsito brasileiro

A legislação de trânsito brasileira estaria virando uma piada não fosse por um detalhe: não tem a menor graça. Fico cada vez mais impressionado com a incompetência de quem cria e também de quem aprova essas leis. Os casos mais escandalosos foram os selos de parabrisa e depois os tais kits de primeiros socorros. Só podiam ser comprados os “homologados”, uma tremenda patifaria que enriqueceu alguns, e ficou tudo por isso mesmo. Outro exemplo, atual: se você não recorrer ao manjado esquema de repassar seus pontos das multas para outras pessoas acabará sendo punido. Mas se trambicar, fazendo isso, estará a salvo. E poderá continuar cometendo novas infrações, sem nenhum risco de ganhar um gancho de 30 dias, seis meses ou um ano de suspensão da CNH, fora o cursinho de reciclagem, que engorda de forma abusiva o caixa das auto-escolas (170 reais o presencial e 150 reais à distância, em valores de outubro), e o tremendo saco e perda de tempo que é enfrentar a burocracia do Detran. Um despachante cobra um absurdo para fazer esse serviço, chegam a pedir 900 reais, e na verdade trabalhará pouco: boa parte do abacaxi quem tem que descascar é o próprio cliente.
Onde está o furo da lei? Em permitir o repasse de pontos. Isso não poderia existir, recaindo sempre a responsabilidade sobre o dono do veículo. Aí o sujeito pensaria dez vezes antes de confiar seu carro ao filhinho irresponsável ou a qualquer outra pessoa não confiável. O dono do veículo seria transformado no principal agente fiscalizador, sobretudo com atitudes preventivas. O atual formato permite e incentiva as fraudes, portanto é uma lei burra.
Mas o principal é que haveria igualdade de tratamento para todos, eliminando a possibilidade do trambique. É inadmissível que sejam punidas só as pessoas que fizeram o correto, assumindo elas próprias suas multas e pontos, enquanto os espertinhos se safam.
A questão é que a atual estrutura dos Detrans não comportaria o movimento se a lei fosse aplicada com isonomia, ou seja, para todos. Basta ver o número de motoristas que repassam seus pontos para saber claramente quantos mais engrossariam as filas para cumprir os rituais burocráticos para o cumprimento das punições.
Outro absurdo é a dupla e tripla punição, que afronta todos os princípios do Direito: se o motorista já pagou a multa, como pode continuar sendo punido com pontos, suspensões e obrigatoriedade de cursos? Ou uma coisa, ou outra. Essa overdose punitiva na verdade só encobre a incompetência oficial, incapaz de achar soluções estimulantes para o trânsito. Só pensam em punir. Desconhecem que muito mais eficaz seria a motivação. Aqui faço 3 sugestões, como exemplos: 1) Isenção de um IPVA ao motorista que ficasse cinco anos sem nenhuma multa nem acidente em seu prontuário. 2) Abatimento de cinco pontos do seu prontuário se permanecer um ano sem nenhuma multa, a partir da data da última infração. 3) Criação da categoria “Motorista Exemplar”, ou “Motorista Padrão”, ou “Motorista Ouro”, ou qualquer outro nome criado em concurso popular, que lhe daria direito a uma cartela, por cada ano sem multas e sem acidentes, para abatimento progressivo no imposto de renda e desconto no seguro obrigatório. Essa renúncia fiscal compensa como investimento em educação e pela redução do custo dos acidentes aos cofres públicos. É importante observar, por exemplo, que um acidentado, com sua necessária prioridade, está tirando a vaga hospitalar de uma pessoa que espera na fila por doença. Se isso for reduzido, e são milhares os acidentados, desafogam de forma considerável os hospitais.
Hoje, com os recursos da informática, tudo isso é muito simples de criar e controlar. Com a soma dessas medidas, ao perceber que têm também a ganhar se começarem a mudar sua postura no trânsito, uma legião de agressivos e mal-educados seriam induzidos a buscar na direção defensiva (centrada na cautela e prevenção de acidentes) os caminhos de uma conduta civilizada. E o país, além de se tornar melhor, economizaria os milhões que hoje gasta para coibir os abusos no trânsito e pagar todas as suas conseqüência nefastas, incluindo a internação de acidentados, cerca de 400 mil por ano, na maioria em hospitais públicos. Os 1,5 milhão de ocorrências, com cerca de 34 mil mortes por ano, segundo dados oficiais do Sistema Brasileiro de Trânsito, evidenciam que só esse setor, fora as demais violências, é pior no Brasil do que qualquer guerra em curso no mundo.      
A combinação equilibrada e inteligente de punição com motivação nos daria um trânsito com certeza muito melhor. A prática apenas da punição só gera rancor, e mais ainda quando é injusta e só aplicada a alguns. A motivação, ao contrário, deixa as pessoas mais leves, educadas e até solidárias. Então minha sugestão é também que a motivação se sobreponha gradualmente, na lei, aos atos meramente punitivos.  
Ocorre que se todo mundo andar bonitinho e for educado no trânsito vai cair substancialmente a arrecadação. Isso derrubaria a indústria da multa, que hoje engorda os cofres públicos. E eles sabem disso. Tanto que o orçamento de arrecadação da Prefeitura de São Paulo prevê as receitas com multas de trânsito. Como pode uma coisa dessas? Como é que alguém pode fazer uma previsão de orçamento baseada no imponderável? E na ilegalidade? A não ser que infrações de trânsito não sejam mais interpretadas como ilegalidades dos motoristas... Em 2010, por exemplo, São Paulo bateu recorde de arrecadação em multas de trânsito, com o montante de R$ 473 milhões. Com o natural aumento da frota circulante e do número de radares (pularam de 508 para 576 em um ano), e de agentes pela cidade, é óbvio que esse valor vai crescer sempre. A previsão para 2012 é de R$832 milhões. As ruas mal conservadas mostram que essa fortuna não retorna na totalidade à sua origem, que é o sistema viário.
Sabe-se que em algumas cidades do interior o equilíbrio orçamentário depende desse tipo de arrecadação. Aí cabe a pergunta: interessa mesmo aos seus prefeitos um trânsito tanto quanto possível perfeito e sem infratores? É claro que ninguém vai admitir isso, seria uma estupidez, mas a resposta pode ser encontrada na sinalização sem critérios e sem racionalidade que se vê em toda parte, além de semáforos que fotografam sem tempo de tolerância nas mudanças.
Há vários absurdos na nossa legislação de trânsito. Um dos mais graves é o tratamento dado aos diferentes infratores. Um bêbado que enfia seu carro sobre calçadas e mata pessoas é menos punido, proporcionalmente, que o motorista flagrado a 65 por hora quando o limite era 60. Esses assassinos continuam impunes, ou cumprem penas ridículas. Outro absurdo é estabelecer níveis toleráveis de alcoolismo, quando o correto seria impor a tolerância zero. O certo seria não poder beber nenhuma gota, e ponto final, porque a reação de cada organismo à bebida é diferente, não segue um padrão homogêneo. E vai variar também em cada pessoa conforme sua alimentação e pressão arterial no momento da ingestão do álcool.
Alguns detalhes da legislação são incompreensíveis, para não dizer malucos. É o caso do motorista que “arremessa sobre pedestres ou outros veículos objetos ou detritos”. Isso é considerado uma infração média. Não consideram grave, muito menos gravíssima. Dá para entender? Essa tibieza da lei permite  que multidões de motoristas e passageiros mal-educados arremessem lixo nas ruas e estradas.  
Sei da inutilidade de escrever tudo isso neste país de autoridades cegas e surdas, para não entrar no lamaçal da corrupção. Vou encerrar contando o seguinte episódio: em 1995 eu era editor-chefe do “Jornal do Economista”, do Corecon - Conselho Regional de Economia (SP), e fiz uma matéria de duas páginas com várias sugestões (totalmente novas) para melhorar o trânsito de São Paulo. Sugeria, por exemplo, a criação da rádio trânsito, que só foi surgir muito tempo depois; sinalização de vias alternativas para desafogar as grandes avenidas; um sistema para organizar o transporte escolar e acabar com as filas duplas; e várias outras idéias.
Tive o cuidado de enviar o jornal, acompanhado de uma cartinha, para todas – eu disse todas – as autoridades que dirigem os órgãos de trânsito: Detran, CET, Secretaria Municipal dos Transportes, etc.
Ganha um doce quem acertar quantos me responderam com algum comentário ou mesmo simples agradecimento pelo interesse de um cidadão em melhorar sua cidade. Isso: quem pensou zero acertou. Nenhum diretor desses órgãos multadores e mal-afamados quando se trata de prestar serviços públicos teve sequer a delicadeza de acusar o recebimento da cartinha e do jornal.
Isso mostra o descaso deles com os cidadãos. Se fosse uma matéria de pau, denunciando patifarias, com certeza teriam respondido com um indignado texto.
Queridas e queridos, isso é o Brasil. Um país lindo e amado, mas também desolador.

Um comentário:

  1. Caro jornalista Milton Saldanha!
    Só discordo do seu irrretocável artigo, que desvela a cruciante questão do trânsito brasileiro, quando você de tão cético que está em acreditar - nos órgãos públicos fiscalizadores do trânsito - escreve que considera inútil trazer à baila este tema. Considero suas sugestões pertinentes e factíveis e você está certo quando afirma: como as autoridades apoiarão tais iniciativas quando preveem a arrecadação de multas de trânsito como receita[sic]?!...
    Caloroso abraço! Saudações inconformadas!
    Até breve...
    João Paulo de Oliveira
    Diadema-SP

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