domingo, 6 de novembro de 2011

Uma pista para entender o apoio dos camponeses à guerrilha em Cuba

Há muitos anos venho lendo sobre a Revolução cubana que levou Fidel Castro ao poder. Um detalhe sempre me intrigou: o que explicaria o tão grande e decisivo apoio dos camponeses à guerrilha, na Sierra Maestra?
Nem mesmo quando viajei com meu irmão Rubem Mauro, ambos como repórteres, por mais da metade da ilha, durante 16 dias, em setembro de 2004, consegui uma resposta, ou sequer uma pista, para entender isso. 
Esqueça dos idealistas, poetas e sonhadores que acham que camponeses, pela vida dura que levam, são aliados naturais das revoluções. A realidade não é aquilo que eles gostariam que fosse. É bem diferente. Camponeses são pessoas simples, sem escolaridade, geralmente manipulados por religiosos e caudilhos, e com tendência a desconfiar de estranhos. Com miséria ou sem miséria, tendem a ser conservadores, como a maioria dos pobres, em decorrência da ignorância. Claro que isso não é uma regra, estou falando em tendência.
Os camponeses bolivianos, por exemplo, vivem na extrema miséria e, no entanto, apoiavam os regimes militares de direita. Eu estava em Cochabamba, em 1972, no dia do aniversário da cidade. Era feriado e havia uma festa, com a presença do ditador do período, o general Hugo Banzer, cercado de guardas-costas. Desfilaram militares, pessoas bem vestidas e brancas, da alta sociedade local, e finalmente os camponeses, todos maltrapilhos, com panos enrolados nos pés (fazia muito frio) porque sequer tinham sapatos e botas. E olha que era a roupa que tinham para ir à festa na cidade. Eram apoiadores do regime e um dos grupos, os milicianos, desfilou portando armas, inclusive uma metralhadora pesada apoiada em tripé sobre a cabine de um caminhão. Eu estava com um amigo suíço, loiro, e por nossos tipos e roupas ficava evidente que éramos estrangeiros. Isso provocava em alguns olhares hostis, beirando a agressividade. A gente fingia não perceber.
Esse conservadorismo dos camponeses de Cochabamba é totalmente oposto ao que se verifica entre os mineiros, os trabalhadores das minas de estanho de Siglo XX, que são politizados e contestadores, além de muito organizados. A explicação para isso começa em 1952, na revolução do nacionalista e populista Victor Paz Estenssoro, o Getúlio Vargas da Bolívia, que promoveu a nacionalização das minas de estanho e a reforma agrária. Estenssoro inclusive legalizou e armou as milícias camponesas e mineiras. A direita boliviana conseguiu um importante aliado, mas sua malandragem foi manter as terras boas nas mãos dos grandes proprietários, enquanto aos camponeses cabiam pequenas glebas de terras ruins, pouco produtivas. O que por sua vez explica a permanência deles na miséria, mesmo depois de uma reforma agrária com tantos anos. Nesse tempo todo foram maquiavelicamente levados a acreditar que o “comunismo” lhes tiraria suas propriedades. Vá tentar convencê-los de que isso não tem sentido...
Já os mineiros, morrendo de intoxicação aos 35 anos de idade, e cercados também de extrema miséria, nada têm a que se apegar. Não lhes resta uma mínima ilusão. Seus sindicatos são de esquerda.
Um dos fatores da derrota e morte de Che Guevara na Bolívia, além da sabotagem do Partido Comunista local, em outubro de 1967, foi não ter conseguido o apoio dos camponeses. Por medo ou safadeza alguns até simulavam isso, mas assim que chegava o exército apontavam a direção que Che tinha seguido com seus guerrilheiros.    
Voltando a Cuba, finalmente achei a grande pista que começa a me levar ao entendimento do que aconteceu. O apoio dos camponeses a Fidel Castro foi realmente muito grande e ocorreu com extrema rapidez. Ocorreram traições e vacilações, é bem verdade, como mostra a literatura sobre a guerrilha. Mas foram poucos os casos quando comparado com o decisivo apoio, que permitiu inclusive formar e treinar colunas guerrilheiras para a luta.
Essa pista está em poucas linhas, sem nenhum aprofundamento, no livro de Anthony De Palma: “O Homem que Inventou Fidel”. É a história da vida e da aventura do célebre jornalista norte-americano Herbert L. Matthews, do New York Times. Mattews foi o jornalista plantado pela própria guerrilha na Sierra Maestra para provar à opinião pública cubana e mundial que Fidel Castro estava vivo, organizado e lutando com seus guerrilheiros. Ao contrário do que alardeava a ditadura de Fulgência Batista, apontando Fidel como morto, logo depois do desastroso desembarque do iate Gramma (encalhado no lugar errado) e dos combates na parte oriental da ilha.
E vejam, aqui com minhas palavras, o que o autor nos conta: havia naquela região um conflito de latifundiários com antigos posseiros. Quando a guerrilha se instala nas selvas das montanhas, e todos achavam que logo seria esmagada, os pistoleiros pagos pelos fazendeiros aproveitaram para fazer a limpeza. Os camponeses eram expulsos das casas e terras onde viviam e plantavam há muitos anos, sem que o Exército ou a polícia de Batista lhes dessem qualquer proteção. Pelo contrário, acobertavam os crimes. Os guerrilheiros, por outro lado, prestavam toda assistência e proteção possível aos posseiros. Eram como anjos que ali tinham chegado do céu para ajudá-los e protegê-los.
Os fazendeiros, com seus crimes; e Batista e seu exército, com sua conivência; tinham, sem nenhuma percepção do que se passava, jogado aqueles pobres coitados nos braços da Revolução.
Alguns daqueles camponeses, que na época sequer eram alfabetizados, depois tiveram acesso à educação e hoje fazem parte dos quadros do governo, em importantes cargos.
Uma das primeiras e mais drásticas medidas da Revolução foi a reformar agrária, atingindo inclusive as terras da própria família Castro. Fidel não teve a menor gratidão pelo presente que recebera dos ambiciosos fazendeiros. Todas as suas terras foram loteadas e divididas em cooperativas de produção.
Hoje, discutir a questão agrária cubana virou uma questão polêmica. Na verdade, ocorreram acertos e erros. O açúcar, por exemplo, que por muito tempo foi a pedra basilar da economia da ilha, juntamente com a mineração do zinco, caiu em desgraça com a super oferta mundial do produto. Em certo momento o governo percebeu que quanto mais produzia, mais perdia dinheiro, porque o custo era maior que a receita. Além disso, a antiga União Soviética, para ajudar Cuba, comprava o açúcar a preços fora de mercado, pagando mais.
Viajando através do país de automóvel, como fizemos, sempre à luz do dia, pudemos observar a ociosidade de extensas regiões rurais cubanas, um desperdício num território tão pequeno e com tantas bocas a alimentar, fora os problemas causados por décadas de severo bloqueio econômico norte-americano. O modelo rural cubano precisa se repensado, disso não tenho dúvida. Como também não tenho nenhuma dúvida de que sem o apoio dos camponeses a guerrilha jamais teria vencido.

5 comentários:

  1. Caros leitores: obrigado pela atenção que dedicaram ao meu texto. É claro que o tema é vasto e eu teria muito mais a comentar. Mas blog não é livro, é para leitura rápida. Queria apenas acrescentar uma observação que acho importante: é importante sempre tomar cuidado com analistas apressados ou de má fé. Alguns articulistas pouco afeitos ao esforço da pesquisa, ou talvez por má intenção mesmo, criticaram o "fracasso da safra de cana cubana", que caiu dos 8 milhões para algo em torno dos 3,5 milhões de toneladas. Como expliquei no texto, isso não foi um fracasso e sim uma deliberada estratégia de política econômica, para não ampliar o déficit em contas correntes. Cuba foi buscar outras alternativas, elegendo o turismo (até então visto de nariz torno pelas velhas lideranças da Revolução) como a saída. Sobre isso recomendo muito a leitura do excelente livro do Fernando Moraes, "Os últimos soldados da Guerra Fria". É imperdível.
    Beijos!
    Milton Saldanha

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  2. Amigas e amigos: dia 5/Nov. recebi o primeiro relatório da Liana Carolina apontando: 401 visitas ao blog. Nada mau, considerando que tinha começado dois ou três dias antes. Esse número corresponde a 10% do mailing do jornal Dance, que utilizo para divulgar também o blog. Então recebi muitos comentários diretamente pelo e-mail do jornal, pelos quais agradeço, somando aos que aqui conseguiram postar. A Liana já removeu dificuldades iniciais. Na verdade, não estou interessado na quantidade e sim na qualidade dos leitores. Qualquer site de fofocas e outras futilidades alcança milhões de acessos. É um oceano de baboseiras. Aqui, com poucos, mas excelentes participantes, quero ter diálogos que me ajudem a aprender mais.
    Obrigado a todos!
    Beijos!
    Milton Saldanha

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  3. E não poderia ir para o meu baile de tango sem antes fazer um agradecimento muito especial aos queridos amigos professor João Paulo de Oliveira e Cristina, que estão fazendo uma divulgação extra deste blog. Onde apareço dançando tango com duas estrelas, Márcia Mello e Lucimara Lima. João Paulo também tem um blog, que nos remete ao fascínio lúdico das velhas locomotivas maria fumaça. Visitem e vão curtir muito.
    Beijos!
    Milton Saldanha

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  4. E só complementando: o blog foi lançado dia 2 Out., quarta. Neste domingo, dia 6 Out., às 21:39, registrava 520 visitas.
    Milton Saldanha

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  5. Caro jornalista Milton Saldanha!
    Como você já constatou os acessos são muitos, mas creio que seus leitores reais logo mais estarão comentando com desenvoltura!!!!
    Com muita satisfação divulgo seu blog, porque seus artigos nunca nos deixam indiferentes!!!
    O artigo em foco deixou-me propenso a refletir sobre o modo de vida que tínhamos quando vivíamos aterrados fugindo dos predadores nas savanas do Continente Africano e o da contemporaneidade quando também vivemos aterrados fugindo de facínoras e também com a premissa do "ter" em detrimento do "ser"...
    Caloroso abraço" Saudações cubanas!
    Até breve...
    João Paulo de Oliveira
    Diadema-SP

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