segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Recordações da Ultima Hora: a vingança do Cabral

A Última Hora, fundada e dirigida por Samuel Wainer, formava uma rede nacional. Com o mesmo título, logotipo em azul, identidade visual e seções, até onde lembro era editada no Rio, São Paulo, Recife, Porto Alegre. Depois do golpe de 1964 foi fechada e mais tarde reaberta em São Paulo. Em Porto Alegre resultou na atual Zero Hora. Fui repórter da Última Hora, nesta segunda fase, trabalhando com o Samuel Wainer, nome lendário e polêmico do jornalismo brasileiro, que colecionava tanto amigos como inimigos. Só que nessa segunda fase ele não era mais dono do jornal e sim empregado do Otávio Frias de Oliveira, do grupo Folha de S.Paulo, que havia adquirido o título.
Naquela redação convivi diariamente com nomes notáveis: Plinio Marcos, Antonio Contente, Diaféria, e um vasto time de antigos jornalistas com muita estrada e quilometragem percorrida. Eu estava naquela fase de transição, já um bom repórter mas ainda meio foca. Já estava no jornal quando o Samuel Wainer assumiu a direção. Lembro-me que o Frias chegou com ele na imensa e ruidosa redação, bateu palmas pedindo silêncio: “O bom filho à casa torna”, disse Frias, anunciando o novo diretor.
Ali me aproximei de alguns veteranos, quase tietagem, em busca das suas histórias e experiências. Um deles era Cabral, que fumava cigarro com piteira e gostava de vestir coloridas camisas de seda. Cabral, diziam, foi uma lenda do jornalismo policial. Não sei se era verdade, mas contavam que chegou a localizar bandido em morro antes da polícia. Denunciava e ficava no local esperando a prisão para cobrir como furo.
Dele contavam também o seguinte episódio:
Mulherengo, Cabral gostava de cortejar moças bonitas com belos jantares, em restaurantes sofisticados. Não tomava o cuidado de checar antes os preços, mesmo ganhando mal como todo mundo naquela época. E foi assim que levou mais uma para jantar, com direito a entrada, camarão, vinho italiano, sobremesa. Quando pediu a conta levou um susto. O preço era um absurdo, consumia boa parte do salário que ganhava num mês inteiro de trabalho. Para não dar vexame agüentou no osso. Pagou com cheque, furioso, e se retirou com sua convidada.
Nos dias seguintes aquilo ficou martelando na cabeça de Cabral.   
Estava realmente revoltado com o absurdo da conta. “Isso não vai ficar assim”, pensou, e teve uma idéia.
Chamou um contínuo da redação, prometeu-lhe uma caixinha, e pediu que fosse ao mesmo restaurante para fazer reserva de jantar para quatro pessoas. Mandava até um cheque como sinal, por garantia, e pediu ao rapaz que voltasse com a nota fiscal.
Dia seguinte, quase duas horas antes do horário previsto na reserva, requisitou uma Kombi da frota do jornal e saiu. Mandou que o motorista seguisse para os baixos de viadutos da Zona Oeste onde precariamente se abrigavam grupos de mendigos. Chegou e anunciou: “estou convidando três de vocês que queiram fazer o melhor jantar das suas vidas. É só embarcar, é tudo por minha conta”. O grupo se formou em torno da Kombi, todos queriam ir. Cabral então selecionou os três privilegiados, procurando entre eles os mais feios, esfarrapados e mal-cheirosos.
O restaurante naquele horário já tinha bom movimento e a mesa de Cabral estava prontinha, com cartão de “reservada”. Quando ele entrou com seus convidados foi um choque geral. Silêncio. Garfos e facas pousaram silenciosos nas mesas. Olhares incrédulos de todos os lados.
Cabral acomodou-se com os mendigos e pediu o cardápio para os pedidos. O dono, ou gerente, surgiu do nada: “O que o senhor está fazendo? Não pode ficar aqui com essas pessoas. Vou chamar a polícia”. E Cabral: “Isso, chama a polícia, é isso que eu quero, escândalo. Vou chamar também meus colegas dos jornais. Discriminação racial e social é crime. Estes senhores são meus convidados, cidadãos como qualquer brasileiro, e parte do jantar já está até paga, está aqui a nota fiscal”.
Nesse meio tempo, vendo a encrenca armada, e não agüentando o odor que se espalhou pelo recinto, mais da metade dos clientes já se retirava, uns rindo, outros furiosos.
O gerente capitulou. Mandou servir, postando-se de braços cruzados e cara amarrada a alguns metros da mesa. O jantar foi uma cena dantesca, de bocas abertas desdentadas mastigando vorazes, líquidos e babas escorrendo pelos cantos dos lábios, mãos imundas avançando sobre copos e travessas cintilantes. Os garçons ficaram num grupo à distância, alguns usando lenço para tampar o nariz, outros de costas para a mesa, repugnados. E Cabral recostado na cadeira, fumando com sua piteira, sorrindo, feliz.
Quando terminaram, fartos, e sozinhos na casa, o gerente se aproximou. “Senhor Cabral, pelo amor de Deus, nunca mais faça isso de novo. O senhor pode nos arruinar. Só hoje perdi vários clientes. Mas a conta está certa, o senhor não precisa pagar mais nada. Volte quando quiser, traga sua noiva, será convidado da casa”.
“Jamais – replicou Cabral – vocês me roubaram descaradamente da outra vez e agora dei o troco. Estamos quites. Agora fique tranqüilo, nunca mais pisarei nesta casa”.

9 comentários:

  1. Caro jornalista Milton Saldanha!
    É como sempre digo, você tem muitas histórias - evidentemente de sua lavra - para nos contar!!! Aprecei sobremaneira a estratégia utilizada pelo Cabral para dar o troco no gerenciador do restaurante careiro!!!!
    Caloroso abraço! Saudações comensais!
    Até breve...
    João Paulo de Oliveira
    Diadema-SP

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  2. Amigas e amigos: Bom dia! Obrigado caro professor João Paulo, sempre aqui presente com seu estímulo generoso. Seguinte: várias pessoas estão reclamando (pelo e-mail do jornal Dance) que não conseguem abrir o blog. Outros conseguem normalmente, como o professor, que até posta comentários. Alguém saberia explicar o que acontece?
    Grato a todos! Beijos!
    Milton Saldanha

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  3. Hahahaha!
    Essa história é muito boa... o Cabral "se puxou" nesse episódio. Que legal termos a oportunidade de estar dividindo esses acontecimentos geniais contigo, Milton.
    Adorei também a curiosidade sobre o surgimento do nome da "Zero Hora".
    Beijão,
    Milena Vasconcellos - POA/RS

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  4. Caro jornalista Milton Saldanha!
    Forças ocultas rondam o mundo cibernético e ocasionam entraves inexplicáveis!!!
    Falando em forças ocultas você poderia nos brindar com suas reminiscências do seu tempo de adolescente, quando vivemos por poucos meses sob a égide do Presidente Jânio Quadros.
    Aproveito o ensejo para indagá-lo: quando seu precioso livro sairá do prelo?!... Quero ser um dos primeiros a ter um exemplar autografado!!!!
    Caloroso abraço! Saudações leitoras!
    Até breve...
    João Paulo de Oliveira
    Diadema-SP

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  5. Caro João Paulo: sua sugestão é um dos capítulos (que chamo de crônicas) do livro Periferia da História. Estou nos acertos finais para entrar em máquina. Grato, abraço!
    Milton Saldanha

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  6. Amiga Milena Vasconcelos: a imprensa gaúcha na época pré-64 era um colosso. Além das rádios, havia os seguintes jornais diários, todos expressivos: Correio do Povo, Diário de Notícias, Última Hora, Folha da Tarde, Folha da Tarde Esportiva, A Hora e talvez alguns pequenos, que agora não recordo. Era muita coisa. Os gaúchos liam muitos jornais. Mais tarde surgiu a Folha da Manhã (da Caldas Junior), onde trabalhei 2 anos como repórter, um período de grandes reportagens da minha vida: eu assinava no mínimo uma reportagem de página central, dupla, por semana. Era muita produção. Depois do golpe de 64 a Ultimo Hora foi vendida para o grupo Ary de Carvalho, que criou a Zero Hora, num prédio acanhado da rua 7 de Setembro, Centro. A Zero, finalmente, foi vendida para a RBS, que teve origem na Rádio Gaúcha, e se tornou o grande jornal que é hoje.
    Beijo!
    Milton

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  7. Olá Milton..
    Gostei da história, que poderia ser um conto de natal, só que esse foi o conto do jornalista. Bem dado no dono do restaurante chic.
    Se a moda pega. Tai uma boa idéia pro Programa Fome Zero..rssss
    E continuaremos aqui esperando novas.
    abços

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  8. Pois é, Cristina, eu nunca tive certeza se a história aconteceu mesmo, mas a turma contava esse e outros "causos". E como o episódio é muito bom, em qualquer circunstância, entre a realidade e a lenda, ficamos com a lenda, como já dizia o jornalista do velho Oeste americano no maravilhoso clássico de John Ford "O homem que matou o facínora", filme que vi só 10 vezes...
    Obrigado, beijo!
    Milton Saldanha

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  9. Milton, muito obrigada por complementar dados essenciais a esta minha curiosidade sobre o surgimento da Zero Hora. Eu sabia que tu era famoso, mas não sabia que tinha tanta história assim... hehehe! Nossa, realmente são anos e anos de estrada... Parabéns pela tua trajetória!! Estarei sempre por aqui te acompanhando.
    Beijos,
    Milena.

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